



Dia Mundial da Alimentação: nossas ações são nosso futuro
O título deste post é o tema do Dia Mundial da Alimentação em 2021 – data celebrada hoje, 16 de outubro, desde 1981, quando foi escolhida para lembrar a criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), nesta mesma data em 1945. O objetivo da agência é “alcançar a segurança alimentar de todos e garantir que as pessoas tenham acesso regular a alimentos de alta qualidade suficientes para levar-se uma vida ativa e saudável”.
É fundamental falarmos disso no momento em que 19,1 milhões de brasileires passam fome – ou seja, vivem o que se chama de grave insegurança alimentar. Este número, nos últimos dois anos, aumentou em quase 9 milhões, praticamente o dobro da pesquisa anterior, que analisava o período 2017-2018. O cenário foi impulsionado também, mas não apenas, pela pandemia de Covid-19, e já leva 116,8 milhões de pessoas a estarem em algum grau de insegurança alimentar (leve, moderado ou grave), de acordo com o levantamento mais recente da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Isto representa mais da metade da população do País. No mundo, quase 40% da população (3 bilhões de pessoas) não têm recursos para ter uma alimentação saudável, segundo a própria ONU.
E é importante pararmos rapidamente para definir o que é insegurança alimentar – termo que aponta uma expressão mais social que biológica e “fala sobre as pessoas terem assegurado o alimento que chega até elas”, conforme explica a doutora em Ciências da Saúde Denise Oliveira, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Alimentação, Saúde e Cultura, da Fiocruz Brasília nesta reportagem. Ou seja, acontece quando o indivíduo não tem acesso pleno a alimentos e muitas vezes não sabe quando será sua próxima refeição nem do que ela consistirá.
Embora a pandemia tenha impactado negativamente a situação, este cenário grave já vinha se desenhando há mais de uma década. De acordo com Denise, um dos maiores desafios para a garantia de uma alimentação adequada e suficiente aos brasileiros é a própria dinâmica da produção. “Os sistemas alimentares hoje são predatórios. Destroem muitas variedades de alimentos pelas culturas que geram commodities: gado, pasto, soja, laranja…” A pesquisadora explica que esse contexto gera um problema muito mais profundo do que há 40 anos.
“Antes, o problema era acesso, e a distribuição de renda melhoraria a situação. Hoje, além da desigualdade, nós também estamos perdendo fontes importantes de alimento porque não interessa produzir o que não gere dinheiro.”
– Denise Oliveira
O que acontece, na prática, é que este cenário favorece a produção e consumo de alimentos ultraprocessados – eles se tornam mais baratos, porque sua produção industrial recebe uma série de subsídios e incentivos governamentais, e mais fáceis de encontrar, porque sua distribuição massiva também é feita por grandes empresas, normalmente multinacionais, com grandes capacidades logísticas e metas agressivas de “expansão de mercado”, que as fazem chegar quase que a qualquer lugar do mundo em busca de mais consumidores.
Desertos alimentares
Nesta excelente reportagem de 2017, o UOL Tab analisava a existência dos chamados desertos alimentares – estudando sua existência mesmo na maior e mais rica metrópole da América Latina, São Paulo – e apontava “a forte articulação da indústria de ultraprocessados na distribuição para o pequeno comércio, que consegue chegar em praticamente todos os pontos de venda da cidade. Isso pode explicar, por exemplo, o alto número de bares e mercadinhos em regiões mais afastadas que comercializam em sua maioria produtos industrializados e não possuem alimentos frescos. Em outras palavras: em muitos pontos de São Paulo, é mais fácil comprar um pacote de bolacha recheada do que uma maçã.” E nem os EUA estão isentos do problema.


Distribuição de alimentos frescos – Foto: Getty Images
Desertos alimentares são lugares com difícil acesso a alimentos nutritivos (frescos e in natura, como frutas, legumes e verduras) e que têm, como consequência, a diminuição do seu consumo. De acordo com esta reportagem da Unifesp, “alguns estudos mostram que a desigualdade socioeconômica é o fator mais determinante no consumo alimentar, considerando que as estratégias de marketing são hoje particularmente voltadas à população mais pobre e configuram uma barreira para alimentação saudável”. A expansão desses desertos pelo Brasil “está associada à desigualdade social e segregação espacial: nas áreas de nível socioeconômico mais baixo, verifica-se que a menor disponibilidade de frutas e hortaliças e grande oferta de itens ultraprocessados tem alterado significativamente os padrões alimentares dos moradores”. Disto, decorrem fenômenos complexos e por vezes contraditórios, como a subnutrição e a obesidade – às vezes ocorrendo ao mesmo tempo -, tanto em adultos quanto em crianças.
Produção agrícola para o mercado externo
O Brasil consegue ser, ao mesmo tempo, um dos maiores produtores de alimentos do mundo e um dos lugares onde a população mais vive a insegurança alimentar. Somos um dos maiores exportadores de insumos agrícolas e nosso volume de produtos exportados anualmente seria suficiente para alimentar toda a população do País. No entanto, investe-se na produção agrícola para a venda de commodities, “sem exigências por parte do governo para que uma parcela da produção seja distribuída no mercado interno”, conforme a Oxfam. E assim alimentamos o ciclo da fome.
Esta produção, tanto interna quanto exportada, em grande parte, hoje se transforma não em alimento para as pessoas, mas sim em ração animal. Depois, estes animais se transformarão em carne, destinada ao consumo de pessoas com maior renda e acesso a alimentos. Ou seja: produzimos mais para os outros do que pra nós; produzimos para alimentar (de forma nutricionalmente pobre, diga-se de passagem) animais que exploramos e sacrificamos; e produzimos para uma elite que poderia escolher com muita consciência o que come. Esta cadeia desconexa, ineficiente, desumana e desigual se conecta ao que falamos acima: pessoas de baixa renda que têm o seu consumo limitado pelo desabastecimento, “fato que justifica o aumento do preço de produtos básicos nas gôndolas do mercado. Com isso, reforçam os índices de cidadãos em situação de insegurança alimentar”, reforça a Oxfam.
Fome e crise climática
Por fim, é fundamental compreendermos que insegurança alimentar e crise climática estão profundamente relacionadas. Esta análise do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP) mostra que um aumento de 2°C na temperatura global média em relação aos níveis pré-industriais levará um adicional de 189 milhões de pessoas para uma situação de fome. As comunidades vulneráveis, a grande maioria das quais depende da agricultura, da pesca e da pecuária, e que contribuem menos para a crise climática, continuarão a suportar o peso desses impactos, mesmo tendo meios limitados para amortecer o golpe.
“Promover a agricultura familiar, fortalecer programas como os de alimentação escolar e estimular a produção e o consumo sustentáveis devem estar entre nossas prioridades. Hoje, mais do que nunca, precisamos unir forças para enfrentar os desafios juntos.”
– Daniel Balaban, Representante do WFP no Brasil e Diretor do Centro de Excelência contra a Fome
O que podemos fazer?
- Votar com responsabilidade e com consciência (sobretudo de classe);
- Apoiar e contribuir com programas de distribuição de alimentos frescos e íntegros a pessoas em situação de vulnerabilidade social e insegurança alimentar;
- Aprender mais sobre alimentação e nutrição e compreender seus efeitos e impactos no âmbito pessoal e no coletivo;
- Ler e espalhar o excelente Guia Alimentar para a População Brasileira, desenvolvido pelo Ministério da Saúde em 2006 e atualizado em 2014;
- Entender a quem interessa o consumo de alimentos industrializados e ultraprocessados;
- Priorizar, dentro de seus recursos e acessos, alimentos frescos e in natura, de preferência produzidos localmente, ajudando a fomentar a agricultura familiar e a reduzir os impactos de transporte e logística;
- Comprar em menos quantidade e com maior frequência, evitando sobras e melhorando seu planejamento familiar;
- Reduzir ao máximo o desperdício de alimentos, reaproveitando itens que normalmente iriam fora (busque por receitas com casca de banana ou de melancia, faça caldo de legumes com talos e cascas, transforme o pão velho em farinha de rosca, etc.);
- Aprender a armazenar de forma adequada as sobras dos alimentos;
- Montar uma composteira para destinar resíduos orgânicos que realmente não forem apropriados para comer (e depois usar o húmus nas plantas);
- Montar uma pequena – ou grande – horta em casa, com o que for possível para você (temperos são as melhores formas de iniciar, mas também é possível ter hortaliças e frutas);
- Reduzir drasticamente o consumo de carnes e alimentos de origem animal, que têm alto impacto ambiental (leia sobre aqui, aqui e aqui).
O que nós estamos fazendo aqui na Kura
Para marcar este Dia Mundial da Alimentação, vamos retomar um projeto que nasceu comigo, Luli, em julho de 2018: O que veganos comem, um canal no Instagram criado para falar sobre comida e cotidiano livres de crueldade e sem frescura, com foco em soberania alimentar, autonomia e eco-feminismo.
Depois de um período parado por conta de questões pessoais e pandêmicas – e de um retorno ensaiado, ao lado da nossa Gab Casartelli, no começo de 2020 -, estamos voltando com este espaço como parte do ecossistema da Kura: um lugar onde vamos falar sobre alimentação do ponto de vista político e prático, em rede. Ou seja, vai ter ativismo alimentar sim, mas também vai ter receitas, dicas de lugares legais, de preparos práticos e baratos (aqui ninguém é fã de produtos veganos caros e ultraprocessados, né!), de hacks cotidianos para facilitar o rotina e, acima de tudo, aquele estímulo para que mais e mais pessoas adotem uma alimentação à base de plantas e livre de crueldade.
Além dos conteúdos, em breve a gente conta mais sobre outras experiências que virão dessa retomada. Por ora, vem com a gente (re)descobrir o que veganos comem. Prometemos que não é caro e nem misterioso. 😉