



Racismo ambiental: por que pessoas negras são as que mais sofrem com as tragédias climáticas?
Não adianta. Não há como se discutir as questões sociais do Brasil sem fazer resgates históricos. Não adianta falar de bem-estar neste país sem se perguntar: “qualidade de vida para quem?” Quem estou deixando de fora quando defendo modelos de vida saudáveis – tendo em vista que o país registrava em 2020, segundo o IBGE, 5,1 milhões de domicílios brasileiros localizados nos aglomerados subnormais, somando 13 milhões de favelas distribuídas em 734 municípios?
O Instituto classifica como aglomerados subnormais “formas de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia, públicos ou privados, para fins de habitação em áreas urbanas” (fonte Politize). Ou seja, pessoas vivendo em terrenos inadequados, com casas estruturadas sem planejamento, com situação socioeconômica instável, condições precárias (ou inexistentes) de acesso à saúde e saneamento. Esta é uma realidade de 45,3 milhões de brasileiros. Então já sabemos, por estatística, quem são aqueles que sofrem primeiro com as consequências da urgente crise climática que traz inconstâncias nos fenômenos naturais.
Os milhões em situação vulnerável têm cor e essa passibilidade não é uma mera coincidência. Não é um simples acaso pessoas pobres e pretas serem as maiores vítimas em favelas, morros, periferias, comunidades ribeirinhas, ocupações e bairros sem infra estruturas. Este é um fato que anda sendo ignorado sem ocupar o centro de todas as discussões acerca do meio ambiente, especialmente pela mídia. Nas circunstâncias dos altos níveis de chuvas que devastaram o sul e o sudoeste da Bahia no final do ano passado, várias partes de Minas no início do ano e logo depois a cidade de Petrópolis, assim como na tragédia que matou 128 pessoas e deixou mais de 71 mil desabrigadas no Estado de Pernambuco neste mês de junho, o racismo ambiental é a causa dos óbitos e vidas destruídas, não a crise climática.
Entende-se por racismo ambiental, as formas desiguais pelas quais etnias marginalizadas são expostas às condições de vida negativas e a fenômenos ambientais nocivos, consequentes da sua exclusão dos espaços de tomada de decisão. Ou seja, discriminação na elaboração de políticas ambientais e elaboração de regulamentos e leis.
No entanto, está previsto na Constituição de 1988, que o direito à moradia é responsabilidade da União, dos estados e dos municípios e que a eles, cabe “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. Então por que ainda vivemos o que vivemos? Para entender, precisamos aprofundar essa conversa e resgatar um pedaço da história que não nos foi contada de um país que, sistematicamente, joga pessoas negras para as margens das cidades e da sociedade negando direito a terra, moradia e oportunidades de trabalho.
O Thiago Amparo, advogado e professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da FGV, em um curso disponível na plataforma da Casa do Saber, faz uso de um trecho de Torto Arado, o tão aclamado livro do baiano Itamar Vieira Jr, para explicar a vida das primeiras gerações Pós- abolição no Recôncavo Baiano. O história é narrada pela voz de uma das protagonistas do livro:
“Meu povo seguiu rumando de um canto para outro, procurando trabalho. Buscando terra e morada. Um lugar onde pudesse plantar e colher. Onde tivesse uma tapera para chamar de casa. Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores. Não poderiam arriscar, fingindo que nada mudou, porque os homens da lei poderiam criar caso. Passaram a lembrar para seus trabalhadores como eram bons, porque davam abrigo aos pretos sem casa, que andavam de terra em terra procurando onde morar. Como eram bons, porque não havia mais chicote para castigar o povo. Como eram bons, por permitirem que plantassem seu próprio arroz e feijão, o quiabo e a abóbora. A batata-doce do café da manhã. “Mas vocês precisam pagar esse pedaço de chão onde plantam seu sustento, o prato que comem, porque saco vazio não fica em pé. Então, vocês trabalham nas minhas roças e, com o tempo que sobrar, cuidam do que é de vocês. Ah, mas não pode construir casa de tijolo, nem colocar telha de cerâmica. Vocês são trabalhadores, não podem ter casa igual a dono. Podem ir embora quando quiserem, mas pensem bem, está difícil morada em outro canto.”
Torto Arado é um livro sobre o legado da escravidão, que aborda essa transição histórica de pessoas negras em situação de escravização para a condição de trabalhadores livres. Porém, existe uma precariedade nessa liberdade, uma vez que foram, na verdade, supostamente libertos, pois não obtiveram nenhuma indenização, nenhuma política de reparação e especialmente, não possuíam terras. Então, caso você que esteja lendo este texto e tenha também lido Torto Arado, ainda não tinha se dado conta que Itamar escreveu uma parte da biografia do Brasil, abordando a permanência desse Brasil até os dias de hoje, seria bom reler agora fazendo as conexões com a realidade atual do país.
Neste período de transição da situação social do negro barsileiro (a partir de 1888), iniciou-se no país uma série de políticas para a fundação da Republica Brasileira após sua proclamação, em 1889. Uma delas foi a política estruturada de imigração europeia, justificada através do mito de que europeus possuíam mão de obra mais qualificada para ajudar no desenvolvimento do Brasil. Na verdade, essa política era sustentada por teorias racistas eugenistas (racismo científico) que propunha então “limpar” a raça através do embranquecimento da população brasileira. Algumas teorias afirmavam que o progresso econômico viria somente através desse “aprimoramento racial”. Esses imigrantes europeus chegavam, em sua maioria, em situação de pobreza, no entanto recebiam concessão para obter terras, créditos financeiros e a preferência na contratação tanto nos campos quanto nas cidades.
Para piorar, essas políticas de imigração aconteceram concomitante à, já estabelecida, Lei de Terras, de 1850. As terras deixaram de pertencer ao reinado português, mas como os lotes eram imensos, apenas pessoas muito ricas ou com facilidade a crédito poderiam comprar. Ou seja, as maiores e melhores terras ficaram concentradas nas mãos dos antigos proprietários e passaram às outras gerações como herança de família. Sendo assim, o denominado “racismo fundiário”, impedia pessoas negras a terem a estabilidade da Terra ou a possuía de forma precária (como vimos no trecho de Torto Arado).
Então se pessoas negras não podiam obter terras e sua mão de obra estava sendo substituída pela mão de obra de brancos imigrantes, restou migrarem para grandes cidades que viviam no início e meados do século um grande boom de industrialização. Essa migração do campo para cidade, também foi uma migração Norte e Nordeste/Sudeste, seguindo a esperança de ter empregos para suas sobrevivências. Não à toa, quem ocupa as periferias das grandes cidades nordestinas e ainda ocupa, em sua maioria, trabalhos precarizados, são os filhos e filhas de nortistas e nordestinos. Quem ficou no campo, ainda encontra dificuldade de obter autonomia, liberdade e qualidade de vida. Vemos essa herança de forma muito claro ao observar a quantidade de ocupações em beiras de rio e morros sem nenhum planejamento urbano dos governos.
Nas regiões agrárias pessoas negras não possuem direito a terras e nas cidades não há também não há regularização fundiária dos espaços que elas ocupam como única alternativa de moradia. Não há, mesmo após séculos passados, garantias de moradia segura e condições de vida básicas para os herdeiros dessa desigualdade colonial.
Tudo no Brasil é história e só vamos conseguir combater as consequência do racismo ambiental quando reconhecermos e encararmos o fato de que infelizmente, ainda hoje, a política brasileira é comandada pelos mesmos donos de terra e propriedades dos séculos passados. Esse é o Brasil Arcaico vivo. Esse é o motivo pelo qual Itamar Vieira Jr não data o período em que se passa a história de Torto Arado. É tudo sobre permanência. Para nós, sendo descendentes de imigrantes europeus ou não ou de negros escravizados (ou tudo misturado), precisamos resolver essa parada juntos.
O primeiro passo: reconhecer que não é sobre mérito a história de quem possui um pedaço de terra ou moradia segura no Brasil. Precisamos reconhecer e discutir o racismo ambiental.
Fontes:
Podcast Pod Passar a Visão Ep 2
Curso Desigualdade no Brasil, na Casa do Saber. Por Tiago Amparo
Tab Uol: Como a divisão de terras de 1850 perpetua a desigualdade racial no Brasil. Por Luiza Pollo.
Dicas de leitura:
O genocídio de negro brasileiro, de Abdias Nascimento.
Sociologia do negro brasileiro, de Clóvis Moura.
Racismo Estrutural, de Silvio Almeida.
A introdução do negro na sociedade de classes, Floestan Fernandes.